sábado, 8 de dezembro de 2007

Aborto Espontâneo e Luto

Para muitas pessoas, a gravidez e a maternidade são acontecimentos naturais na vida de qualquer mulher, que decorrem sem grandes sobressaltos ou problemas. Para muitas pessoas, ter filhos significa alcançar um pequeno pedaço de imortalidade. A fertilidade é venerada em quase todas as culturas e a gravidez é um marco no desenvolvimento adulto, é uma ponte entre gerações e uma ponte para o futuro, rica em simbolismo. A gravidez é um acontecimento que se estende a toda a família, modificando rapidamente o relacionamento dos futuros pais com os seus próprios pais e todos aqueles que os rodeiam. A chegada de um filho marca o final do período turbulento da adolescência e afastamento da família, permitindo a reconciliação e a aproximação à família na idade adulta.

Tanto as meninas como os meninos são expostos a pressões subtis ao longo do seu desenvolvimento para terem filhos. As meninas aprendem a brincar com bonecas, a cuidar delas, a segurá-las de forma correcta exercendo um papel maternal desde os primeiros anos de vida. Os meninos antecipam desde cedo as alegrias de criar os seus filhos, de os levar ao futebol, de praticar desporto, etc. Na idade adulta, a maior parte dos casais deseja ter filhos, presumindo a sua capacidade para os ter.

Para algumas mulheres, a gravidez não é bem sucedida e, por vezes, surge o aborto espontâneo. A morte de um bebé é sempre um choque, mesmo que seja um bebé que não se chegou a conhecer. Não faz parte da lei natural de vida, não é algo que seja esperado, pois os bebés representam o início da vida e não o final. Por causa desta enorme contradição, a morte de um bebé é tão difícil de acreditar e aceitar.

A sociedade nem sempre aceitou (e provavelmente ainda não aceita) que o sofrimento de perder um bebé por aborto espontâneo pode ser comparável, em termos de trabalho de luto, à perda de uma criança com alguns anos de idade. Independentemente de se tratar de uma criança com um ano de idade, uma criança que viveu apenas algumas horas ou um feto com malformações, existe sempre uma reacção de sofrimento emocional, que implica depois a existência de um ajustamento psicológico, tanto individual como familiar.

Ao aborto segue-se um trabalho de luto, que poderá trazer maior ou menor tumulto, conforme a relação da mulher com este bebé, que não chegou a nascer. Além da perda física, existe a perda afectiva. Perdemos um filho que não chegámos a conhecer, a embalar, a alimentar, a abraçar e, com ele, perdem-se as ilusões e sonhos que tivemos para o seu futuro.

É importante que estas mulheres entendam que não estão sozinhas. O aborto espontâneo ocorre em cerca de 25% das gravidezes humanas. É normal que sintam uma dor enorme e difícil de suportar. O tempo é um grande aliado e, com o passar do tempo, é possível ultrapassar a dor.

O trabalho de luto é um processo doloroso. A pessoa passa por fases onde surgem sensações fortes, que parecem permanecer para sempre. É importante que a dor seja vivida, que os sentimentos não sejam ignorados, pois a dor faz parte do processo de recuperação. A dor da perda de um filho vai acompanhar a pessoa durante toda a sua vida, mas com o tempo ela vai aprender a encarar esta dor de forma diferente, aprendendo a acreditar que pode tentar novamente.

Todas as pessoas que passam por um processo de luto, seja ele qual for, passam por várias etapas, que fazem parte do processo normal de adaptação e que seguem um curso previsível (apesar de, naturalmente, existirem algumas diferenças de pessoa para pessoa):

- Negação: Quando a perda é muito dolorosa, é normal que seja difícil acreditar no que está a acontecer. A negação permite uma reavaliação da situação de perda, enquanto a pessoa ainda não está preparada para a aceitar.

- Dor: A recuperação ocorre através da dor. A dor pode manifestar-se sob forma de depressão e tristeza, mas também pela diminuição das defesas do organismo (originando gripes e constipações), dificuldades ao nível de memória e concentração, raiva contra si mesma, contra o pai do bebé ou contra Deus.

- Culpa: Podem surgir sentimentos de culpa relativos a acontecimentos que ocorreram durante a gravidez ou pequenas negligências, que são formas de procurar razões para o sucedido.

- Aceitação e adaptação: À medida que se aprende a aceitar a morte do bebé e a reconhecer que esta experiência originou uma mudança irremediável, a dor vai diminuindo. A memória da gravidez e do bebé passará a ocupar um lugar significativo na vida e no coração da mulher. Gradualmente começará a sentir-se melhor e voltará às suas actividades quotidianas habituais. A dor da perda de um bebé nunca desaparecerá por completo, mas pode ser ultrapassada e diminuir, deixando espaço para novos planos para o futuro.

As Mulheres, os Homens e a Família Sentem o Luto de Forma Diferente

As mulheres e os homens sentem a experiência de luto por aborto espontâneo de forma diferente.As mulheres, geralmente exprimem mais abertamente os seus sentimentos, falando da perda e procurando apoio nos amigos e familiares. A sociedade espera que os homens sejam mais fortes, que escondam o choro e o sofrimento. Por esta razão, o homem sente a dor de forma mais solitária. Os homens têm também menos tendência para desabafar com amigos, procurar grupos de auto-ajuda e iniciar uma psicoterapia. Enquanto que as mulheres manifestam a dor chorando, os homens têm tendência a virar-se mais para o trabalho, evitando pensar no assunto.

Estas diferenças em lidar com o sofrimento podem originar problemas na relação conjugal. O distanciamento do homem cria na mulher a sensação de estar a ser abandonada, pensando que sofre sozinha, pois o seu companheiro parece não estar a sofrer tanto como ela. Por outro lado, as manifestações claras de sofrimento da mulher (choro, tristeza, apatia) podem fazer com que o homem tema que a sua companheira jamais consiga superar a perda.

É importante que o investimento na relação não seja descurado neste momento difícil. O casal deve investir ainda mais no diálogo, no interesse pelas necessidades e pelo bem-estar do outro, na partilha do sofrimento. É também importante que aceitem que todas as pessoas são diferentes e que não lidam com os problemas e contrariedades da mesma forma.

Outras razões para a existência de diferenças na vivência do luto derivam da própria vinculação ao bebé, que é diferente para homens e mulheres. O laço que existe entre a mulher e o bebé que viveu dentro de si é único. É natural que a relação dos homens não seja tão forte e tão real. Apesar de existir um aumento de vinculação pelo visionamento das ecografias, pela percepção de que o bebé reage a estímulos exteriores e pela possibilidade de sentir os pontapés ao tocar na barriga da mãe, a vinculação do pai ao bebé aumenta em fases avançadas da gravidez e especialmente após o nascimento. No caso da mulher, esta relação próxima com o bebé existe desde o início da gravidez.

A perda do bebé afecta não só a mãe e o pai, mas também todos aqueles que com eles se relacionam. Muitos familiares podem ter dificuldade em lidar com a situação: não sabem o que dizer, o que fazer, como exprimir o seu pesar e como demonstrar a sua solidariedade. Não sabem se devem aproximar-se ou se devem manter alguma distância. Criam por sua vez a sensação que preferiram distanciar-se e que não estão interessados em dar apoio. Para solucionar este desconforto, deverá conversar abertamente com eles, abordando este tema. Poderá mostrar-lhes o quanto necessita deles para conversar e para partilhar sentimentos e medos. Todos os que estão preocupados consigo ficarão agradecidos em saber que podem fazer algo útil por si.Se sentir que não está a ultrapassar alguma das etapas normais do luto e se sente que precisa de ajuda, procure um técnico especializado que poderá ajudá-la a seguir em frente.

Procurar Ajuda Especializada

Este período de dor e sofrimento é normal e ocorre associado à perda de alguém que se amou profundamente, o que é facilmente compreensível. Por vezes a mulher sente-se sozinha, mesmo antes de sair do hospital. A relação da mulher com a equipa médica e de enfermagem que a acompanha é claramente direccionada para problemas do foro orgânico. A mulher sente que o espaço da consulta e o pouco tempo disponível não são os mais indicados para a ajudar a falar livremente dos seus sentimentos, emoções, angústias e culpabilidades.

A ajuda de um psicólogo pode ser preciosa nesta fase, onde este pode surgir como alguém disponível para ouvir e para conter todos os sentimentos negativos que vão surgindo, como também pode intervir nos casos mais graves, ou seja, quando o trabalho de luto ainda não ocorreu, apesar de já ter acontecido a situação de perda. A ausência deste sentimento pode ser considerada patológica e pode ser um sinal de alarme. Sempre que uma pessoa esteja exposta a este tipo de situação e não consiga “vestir-se de luto”, ou seja, sentir a perda, deve procurar ajuda.

O psicólogo procura trabalhar o luto, permitindo que a pessoa consiga senti-lo e falar sobre ele. A dor deve ser partilhada, deve ser respeitado o período normal de desequilíbrio, para que depois a pessoa tenha oportunidade de se reequilibrar de forma mais estruturada e adaptada. Ninguém consegue equilibrar-se após a perda de um bebé sem sentir qualquer tipo de sofrimento. A tentativa de fugir à depressão, empurrando-a para o nível inconsciente, pode ter consequências graves no futuro. O trabalho de luto e sofrimento permite-nos crescer e resolver o luto, permitindo que depois tenhamos forças para voltar a ter esperança e a investir e conquistar um novo objecto de amor, um novo bebé.

Sónia Pereira

Nota: este artigo foi publicado em:
http://www.portaljunior.com/
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